Resultados publicados na Cardiovascular Research indicam que efeito está relacionado com ativação da enzima ALDH2, responsável por livrar o organismo de moléculas tóxicas pertencentes à classe dos aldeídos (ilustração: Marcio Ribeiro)

Estudo da USP mostra como o álcool em dose moderada protege o coração
23 de maio de 2018
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Resultados publicados na Cardiovascular Research indicam que efeito está relacionado com ativação da enzima ALDH2, responsável por livrar o organismo de moléculas tóxicas pertencentes à classe dos aldeídos

Estudo da USP mostra como o álcool em dose moderada protege o coração

Resultados publicados na Cardiovascular Research indicam que efeito está relacionado com ativação da enzima ALDH2, responsável por livrar o organismo de moléculas tóxicas pertencentes à classe dos aldeídos

23 de maio de 2018
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Resultados publicados na Cardiovascular Research indicam que efeito está relacionado com ativação da enzima ALDH2, responsável por livrar o organismo de moléculas tóxicas pertencentes à classe dos aldeídos (ilustração: Marcio Ribeiro)

 

Karina Toledo  |  Agência FAPESP – Há pelo menos 20 anos estudos têm mostrado que o consumo moderado de álcool pode ter efeito cardioprotetor em grande parte das pessoas, mas ainda não se sabia ao certo por quê.

Dados de uma pesquisa conduzida no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) indicam que essa proteção pode estar relacionada com a ativação de uma enzima mitocondrial chamada ALDH2 (aldeído desidrogenase-2), que ajuda a eliminar do organismo tanto os subprodutos tóxicos gerados pelo metabolismo do álcool como também um tipo de molécula reativa produzido nas células cardíacas quando estas sofrem um dano importante – como o causado pelo infarto, por exemplo.

“Nossos dados sugerem que a exposição moderada ao etanol causa um pequeno estresse nas células do coração, não suficiente para matá-las. Como consequência, ocorre uma reorganização no sinal intracelular e a célula cardíaca acaba criando uma memória bioquímica contra estresse, também chamada de precondicionamento. Quando a célula é submetida a um estresse maior, já sabe como lidar”, disse Julio Cesar Batista Ferreira, professor do Departamento de Anatomia do ICB-USP e coordenador da pesquisa apoiada pela FAPESP.

O trabalho vem sendo feito em parceria com cientistas da Stanford University, nos Estados Unidos. Resultados recentes, obtidos durante o pós-doutorado de Cintia Bagne Ueta, foram publicados na revista Cardiovascular Research.

Para estudar os efeitos cardioprotetores do álcool em nível celular, os pesquisadores simularam uma condição semelhante ao infarto em corações de camundongo mantidos vivos em um sistema artificial. Nesse modelo, chamado ex vivo, o órgão permanece batendo fora do corpo durante várias horas, sendo alimentado por uma solução rica em nutrientes e oxigênio.

Os cientistas então simulam uma condição clínica conhecida como isquemia e reperfusão interrompendo o fluxo nutritivo para o coração durante 30 minutos. Quando a solução nutritiva volta a correr, o órgão recomeça a bater lentamente e, após uma hora, os pesquisadores conseguem avaliar o tamanho do dano. Em média, nesse modelo, cerca de 50% das células cardíacas morrem caso não seja feito nenhum tipo de intervenção.

“Acreditava-se, antigamente, que o dano principal era consequência do período sem oxigênio. Mas estudos mostraram que, durante a isquemia, as células mudam seu metabolismo e entram em uma espécie de estado dormente. Quando a artéria é desobstruída [reperfusão], o tecido recebe uma enxurrada de sangue com nutrientes e oxigênio e acaba ocorrendo um colapso metabólico nas células”, explicou Ferreira.

Em resposta ao estresse, as células cardíacas começam a produzir grandes quantidades de uma molécula reativa conhecida como 4-HNE (4-hydroxy-2-nonenal), pertencente à classe química dos aldeídos. Em excesso, essa substância tóxica começa a destruir estruturas celulares essenciais.

A enzima mitocondrial ALDH2 é a principal responsável por livrar o organismo dos aldeídos acumulados – tanto o 4-HNE das células cardíacas em estresse quanto o acetaldeído resultante da quebra da molécula de etanol no fígado após uma noite de bebedeira.

No entanto, em trabalhos anteriores, o grupo de Ferreira em parceria com pesquisadores de Stanford coordenados por Daria Mochly-Rosen mostraram que, durante o processo de isquemia e reperfusão, a atividade da enzima ALDH2 era significativamente reduzida. Esses achados foram divulgados na revista Science Translational Medicine e no Circulation Journal.

“A quantidade de 4-HNE se torna tão grande dentro da célula cardíaca que a molécula acaba atacando a própria enzima responsável pelo seu metabolismo”, contou Ferreira.

“Em nosso novo estudo, observamos que no coração exposto ao etanol antes do processo de isquemia e reperfusão a atividade da ALDH2 se manteve igual à de um órgão que não sofreu injúria. Acreditamos que o estresse causado pelo etanol em dose moderada deixa uma memória e, assim, a célula aprende a manter a enzima ALDH2 mais ativa”, acrescentou.

Grupos de estudo

Cinco grupos de estudos foram montados com o objetivo de esmiuçar os mecanismos por trás do efeito protetor observado. No primeiro, considerado como grupo-controle, os corações não sofreram nenhum tipo de dano e não receberam nenhum tratamento ou intervenção. No segundo grupo, os corações foram apenas submetidos à isquemia e reperfusão e, como consequência, perderam em torno de 50% das células.

No terceiro grupo, antes de induzir o dano, os pesquisadores expuseram durante 10 minutos os órgãos extraídos de camundongos machos a uma dose de etanol equivalente a duas latas de cerveja ou duas taças de vinho para um humano médio do sexo masculino. A dose foi ajustada de acordo com a massa dos animais.

“Procuramos seguir a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), que é de até uma dose por dia para mulheres [18 gramas de álcool] e até duas doses para homens. No caso de camundongos, foi algo em torno de 50 milimolar”, explicou Ferreira.

Os órgãos foram depois lavados por outros 10 minutos para retirar o excesso de álcool e, em seguida, tiveram o fluxo nutritivo interrompido, como ocorreu com o grupo dois. Na análise feita cerca de uma hora após a reperfusão, apenas 30% das células haviam morrido, ou seja, o dano foi reduzido em quase 60% na comparação com o grupo dois. Além disso, os cientistas observaram que a atividade de ALDH2 estava duas vezes maior que no grupo não tratado – e em nível equivalente ao do grupo-controle, que não sofreu dano.

No quarto grupo de estudo, além do tratamento com etanol, os corações foram expostos a uma droga capaz de inibir a atividade de ALDH2. Nesse caso, o índice de morte celular subiu de 50% para 80%, confirmando que a proteção promovida pelo etanol de fato é dependente da ação da enzima.

Já no último grupo experimental foram usados corações de camundongos que apresentam uma mutação no gene codificador da ALDH2, que reduz a atividade da enzima em quase 80%. Como explicou Ferreira, os animais são modificados geneticamente para simular essa mutação, que é muito comum na população oriental e afeta quase 600 milhões de pessoas no mundo.

“Nesse grupo, quando expusemos os corações ao etanol, o dano causado pela isquemia e reperfusão foi aumentado. O índice de morte celular passou de 50% para 70%. Porém, quando tratamos os órgãos desse grupo com uma droga experimental capaz de ativar a ALDH2 – conhecida como Alda-1 – o índice de morte celular caiu para 35%”, contou Ferreira.

Segundo o pesquisador, não foi observado benefício ao tratar com a Alda-1 os corações de animais sem a mutação na enzima ALDH2 expostos ao etanol. “Isso sugere que tanto a droga experimental quanto o álcool estão atuando no mesmo mecanismo molecular para ativar ALDH2”, disse.

A molécula Alda-1 já passou pela primeira fase de ensaios clínicos nos Estados Unidos, nos quais se mostrou segura para uso em humanos saudáveis. Deve ter início em breve uma nova fase de testes onde a substância será oferecida a portadores de cardiopatias (leia mais em http://agencia.fapesp.br/20916).

Depende do DNA

Na avaliação de Ferreira, é possível fazer um paralelo entre o consumo regular de pequenas quantidades de álcool por seres humanos e os resultados observados nos corações de camundongos tratados em laboratório com etanol.

“Mas tudo depende do que a pessoa carrega no DNA”, ressaltou. “O acetaldeído resultante do metabolismo do etanol pode ser protetor em pequenas quantidades para a maioria da população, mas também pode maximizar o dano do infarto em um indivíduo com a mutação no gene da ALDH2. Essas pessoas são fáceis de serem identificadas, pois com apenas um copo de cerveja ficam com o rosto vermelho, dor de cabeça e não ganham resistência ao álcool com o tempo”, disse.

O dano ao coração também pode ser agravado caso o álcool seja ingerido em quantidades elevadas, alertou Ferreira, pois isso resulta na produção excessiva de acetaldeído e torna o trabalho de limpeza promovido pela ALDH2 ainda mais difícil.

“O grupo tratado com a droga inibidora da ALDH2 [no qual o índice de morte celular chegou a 80%] mimetiza o que aconteceria em um caso de consumo excessivo de álcool. O difícil é estabelecer a dose segura para cada indivíduo, pois há muitas variáveis que afetam o metabolismo”, disse o pesquisador.

O grupo do ICB-USP tenta agora entender como a presença do acetaldeído resultante do metabolismo do álcool na célula cardíaca cria a memória que mantém a ALDH2 mais ativa. A ideia seria desenvolver uma droga capaz de mimetizar o efeito benéfico do etanol sem expor os indivíduos a riscos – entre eles o desenvolvimento de dependência química.

“A molécula Alda-1 é um possível candidato. Entretanto, é necessário dar continuidade aos estudos de segurança e eficácia em humanos”, comentou Ferreira.

O artigo Cardioprotection induced by a brief exposure to acetaldehyde: role of aldehyde dehydrogenase 2, de Cintia Bagne Ueta, Juliane Cruz Campos, Rudá Prestes e Albuquerque, Vanessa Morais Lima, Marie-Hélène Disatnik, Angélica Bianchini Sanchez, Che-Hong Chen, Marisa Helena Gennari de Medeiros, Wenjin Yang, Daria Mochly-Rosen e Julio Cesar Batista Ferreira, está publicado em https://doi.org/10.1093/cvr/cvy070.
 

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