Tubarão-lixa (Ginglymostoma cirratum) é solto depois de ter medidas e amostras coletadas em águas que banham a cidade de Miami, na Flórida, Estados Unidos (foto: Robbie Roemer para SharkTagging.com)
Análises feitas com amostras de sangue desses predadores revelam que indivíduos que vivem em áreas próximas à zona urbana têm recursos alimentares de menor qualidade que os de locais mais preservados. Desequilíbrios na dieta podem comprometer processos fisiológicos importantes, como tônus cardiovascular, resposta inflamatória e reprodução
Análises feitas com amostras de sangue desses predadores revelam que indivíduos que vivem em áreas próximas à zona urbana têm recursos alimentares de menor qualidade que os de locais mais preservados. Desequilíbrios na dieta podem comprometer processos fisiológicos importantes, como tônus cardiovascular, resposta inflamatória e reprodução
Tubarão-lixa (Ginglymostoma cirratum) é solto depois de ter medidas e amostras coletadas em águas que banham a cidade de Miami, na Flórida, Estados Unidos (foto: Robbie Roemer para SharkTagging.com)
André Julião | Agência FAPESP – Nem mesmo os animais marinhos parecem estar imunes ao modo de vida americano. Pesquisadores do Brasil e dos Estados Unidos descobriram que os tubarões-lixa (Ginglymostoma cirratum) que vivem em áreas próximas à zona urbana de Miami têm mais gordura acumulada e marcadores bacterianos na dieta do que os habitantes de áreas mais conservadas.
Os resultados da pesquisa, apoiada pela FAPESP, foram publicados na revista Science of the Total Environment.
“Essa espécie parece ser mais afetada pela urbanização, uma vez que fica muito próxima a marinas, onde há muitos barcos, restos de pescaria e poluição. No entanto, esse ambiente também pode estar proporcionando uma maior quantidade de presas e maior proteção contra predadores, o que pode contribuir para o maior acúmulo de gordura”, relata Bianca Rangel, primeira autora do estudo conduzido no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP) durante seu doutorado.
Em outro trabalho, publicado na mesma revista, o grupo de pesquisadores constatou que a urbanização parece não afetar na mesma intensidade outra espécie, o tubarão-galha-preta (Carcharhinus limbatus).
Com hábitos menos sedentários, o galha-preta se locomove mais entre as áreas próximas à cidade e outras mais conservadas, como a Baía da Flórida e o Parque Nacional Everglades, consumindo uma maior variedade de presas e vivenciando ambientes mais diversificados.
“Esperávamos para os animais dessa espécie expostos ao ambiente com maior influência da urbanização uma deficiência na dieta, relacionada principalmente aos ácidos graxos essenciais, o que não aconteceu. Da mesma forma, tínhamos a expectativa de encontrar uma presença maior dos ácidos graxos que servem de indicadores da presença de bactérias nesses animais, o que também não ocorreu”, conta Renata Guimarães Moreira, professora do IB-USP e coordenadora da pesquisa.
Curiosamente, a condição corporal dos tubarões-galha-preta era melhor na área urbanizada. A razão pode ser parecida com a observada no caso dos tubarões-lixa urbanos: a maior disponibilidade de presas mais calóricas, incluindo restos de pescarias feitas por humanos, além de uma menor competição com outros predadores.
Como esperado, nos tubarões-lixa, os ácidos graxos bacterianos foram maiores nos indivíduos urbanos do que nos de áreas conservadas. O marcador é provavelmente uma indicação da maior presença de esgoto e, por sua vez, da maior proliferação de microrganismos, fator que influencia a qualidade da dieta dos tubarões.
Na avaliação dos pesquisadores, futuros estudos devem monitorar a qualidade nutricional tanto dos predadores quanto das presas, especialmente porque ácidos graxos saturados aumentados, assim como o desequilíbrio entre esse tipo de lipídio e os ácidos graxos poli-insaturados, podem comprometer diferentes processos fisiológicos, entre eles tônus cardiovascular, resposta inflamatória, reprodução, funções renais e neurais.
Vida nas Bahamas
Os resultados descritos no artigo foram obtidos por meio de análises feitas pelas pesquisadoras da USP em amostras coletadas pelo grupo de Neil Hammerschlag, professor da Universidade de Miami que desde 2011 realiza um monitoramento de tubarões tanto na Flórida, onde fica Miami, quanto nas Bahamas, arquipélago cerca de 500 quilômetros ao sul do estado norte-americano.
Os pesquisadores utilizam um método de captura que não mata os tubarões – a maior parte dos estudos sobre peixes marinhos é baseada em indivíduos capturados pela pesca comercial.
Neste estudo, por sua vez, depois de coletados, os animais são medidos e têm amostras de sangue e tecido retiradas. Uma marcação com um número é colocada em cada tubarão antes de o animal ser solto, o que pode ajudar a comparar os dados caso ele seja recapturado no futuro.
Em um terceiro estudo, que também tem Rangel como primeira autora, os pesquisadores avaliaram diferentes marcadores no sangue de outra espécie, o tubarão-tigre (Galeocerdo cuvier). Nesse caso, foram comparados animais capturados tanto na Flórida como nas Bahamas.
Ainda que não cheguem perto das cidades, esses grandes migradores podem estar sofrendo alguma influência das atividades humanas. As quantidades de ácidos graxos bacterianos, por exemplo, foram maiores nos animais das Bahamas do que nos da Flórida.
“Nesse caso, analisamos apenas tubarões juvenis. Nas Bahamas existe uma competição provavelmente acirrada entre os adultos. Inferimos que, para fugir dessa disputa, os juvenis se alimentem de peixes do fundo, que sofrem bastante influência da matéria orgânica e, por conseguinte, de bactérias”, explica Rangel.
Os pesquisadores não descartam, ainda, a influência de poluição por fertilizantes químicos. Quando usados em excesso, esses nutrientes acabam chegando a rios e mares, favorecendo a proliferação de microrganismos.
Supreendentemente, os pesquisadores encontraram uma baixa qualidade nutricional nos tubarões-tigre das Bahamas, menor inclusive do que a observada na Flórida. Uma das razões pode ser o fato de os animais viverem em áreas próximas de pontos de turismo de mergulho.
Nesses locais, frequentemente os guias turísticos utilizam carcaça de peixe para atrair os tubarões. Os pesquisadores acreditam que os animais acabam gastando uma quantidade significativa de energia para conseguir comida de pouca qualidade, uma vez que as carcaças são basicamente ossos, com pouca carne.
Como até hoje poucas pesquisas realizaram esse tipo de avaliação, Rangel e Moreira ressaltam que os resultados são preliminares e outras análises ainda precisam ser feitas para conferir maior robustez às descobertas. No entanto, os trabalhos trazem alertas importantes para a gestão dos ambientes, devendo ser considerados em políticas de conservação.
“Qualquer ação sobre a conservação desses animais precisa de uma base de informações sobre a biologia e a fisiologia das espécies – e também sobre seu comportamento, sua genética e outros aspectos. Apenas entendendo as alterações que a urbanização causa nos processos metabólicos e endócrinos desses animais será possível traçar planos de conservação e manejo que minimizem o impacto da ação humana sobre essas espécies”, encerra Moreira.
O artigo Urban living influences the nutritional quality of a juvenile shark species pode ser lido em: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0048969721010925.
A publicação Effects of urbanization on the nutritional ecology of a highly active coastal shark: Preliminary insights from trophic markers and body condition está disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0048969722011743.
E o estudo Metabolic and nutritional condition of juvenile tiger sharks exposed to regional differences in coastal urbanization pode ser acessado pelo link: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0048969721016168.
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