Apoio da Anvisa também foi importante, apontam pesquisadores da FGV e da London School of Economics que conduziram estudo de caso sobre o acordo AstraZeneca-Fiocruz firmado durante a pandemia (foto: Geovana Albuquerque/Agência Saúde DF)
Apoio da Anvisa também foi importante, apontam pesquisadores da FGV e da London School of Economics que conduziram estudo de caso sobre o acordo AstraZeneca-Fiocruz firmado durante a pandemia
Apoio da Anvisa também foi importante, apontam pesquisadores da FGV e da London School of Economics que conduziram estudo de caso sobre o acordo AstraZeneca-Fiocruz firmado durante a pandemia
Apoio da Anvisa também foi importante, apontam pesquisadores da FGV e da London School of Economics que conduziram estudo de caso sobre o acordo AstraZeneca-Fiocruz firmado durante a pandemia (foto: Geovana Albuquerque/Agência Saúde DF)
Maria Fernanda Ziegler | Agência FAPESP – Quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, em março de 2020, que a COVID-19 tinha se tornado um problema mundial e os laboratórios e empresas farmacêuticas iniciavam projetos para o desenvolvimento de vacinas, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) começou uma busca por potenciais parceiros para que os imunizantes contra a nova doença pudessem ser produzidos também no Brasil.
Desde o início, o objetivo da equipe da Fiocruz, a maior instituição biomédica da América Latina, era obter um acordo de transferência de tecnologia que permitisse a produção completa da vacina na unidade de Bio-Manguinhos. Para isso, a prospecção de eventuais parceiros incluía uma série de critérios que iam além do estado de desenvolvimento dos produtos e sua adequação para a campanha de vacinação do Brasil, como fatores tecnológicos e características de fabricação.
Por fim, em apenas dez meses – geralmente acordos de transferência de tecnologia de vacinas levam dez anos para serem concluídos –, firmou-se a parceria entre a Fiocruz e a empresa anglo-sueca AstraZeneca. A produção da substância no Brasil permitiu que, no momento mais crítico da pandemia, quando as vacinas eram necessárias e não era possível contar com o mercado internacional, a fórmula da AstraZeneca representasse mais de 50% dos imunizantes utilizados no país.
“Transferência de tecnologia é algo fácil de falar e difícil de pôr em prática, mesmo em condições normais e em um mundo sem pandemia. Por isso, analisar como se deu a parceria entre a Fiocruz e a farmacêutica anglo-suíça AstraZeneca é importante. O caso traz implicações para que novas iniciativas possam expandir a transferência de tecnologia para a produção ampliada de vacinas em países de média renda, como é o caso do Brasil”, afirma Elize Massard da Fonseca, professora do Departamento de Gestão Pública da Fundação Getúlio Vargas e autora de um artigo sobre o tema publicado na revista Research Policy.
O estudo de caso avalia como se deu a parceria Fiocruz-AstraZeneca e aponta quais ensinamentos o acordo firmado em plena pandemia pode trazer para que mais projetos de transferência de tecnologia sejam bem-sucedidos. O trabalho integra dois projetos de pesquisa maiores, apoiados (21/06202-0 e 20/05230-8) pela FAPESP e desenvolvidos em parceria com a London School of Economics (Reino Unido), que já renderam outros artigos e um livro em que os pesquisadores analisam a resposta dos países à pandemia de COVID-19 (leia mais em: agencia.fapesp.br/35704/)
A parceria entre a AstraZeneca e a Fiocruz não foi a única que resultou na disponibilização de vacinas contra a COVID-19 no Brasil. O Instituto Butantan, laboratório do Estado de São Paulo, firmou parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac Biotech para o que, no jargão da área, se chama de Fill and Finish, ou seja, receber a substância, embalar e distribuir.
Outras duas empresas privadas, a Eurofarma e a União Química, firmaram acordos de transferência de tecnologia para as vacinas BioNTech-Pfizer e Sputnik-V, respectivamente, mas os dois imunizantes ainda não foram produzidos no país.
“A parceria da Fiocruz foi a única em que houve transferência de tecnologia de fato, pois somente nesse caso o imunizante foi totalmente produzido no país. O tipo de contrato firmado, que tecnicamente se chama Licensee, é outro diferencial importante. Ele permite que a Fiocruz seja não só um produtor terceirizado da AstraZeneca, como também detenha a possibilidade de fazer modificações na vacina em caso de necessidade, como, por exemplo, adaptar a tecnologia para as novas variantes”, explica Fonseca à Agência FAPESP.
No estudo de caso, os pesquisadores destacaram aspectos importante que possibilitaram à parceria entre a Fiocruz e a AstraZeneca ser bem-sucedida: a capacidade de ser um parceiro importante para a AstraZeneca por ter know-how em cultura de células em biorreatores e em purificação de proteínas; regulação, como o apoio e a flexibilidade da Anvisa; e habilidade política, que incluiu agilidade, transparência e o fato de o país já ter um marco legal que permite a transferência de tecnologia de produtos ainda em desenvolvimento.
“O caso da Fiocruz chama muita atenção tanto pela velocidade como pelo grande desafio que o momento representava. Era uma tecnologia nova, um mundo pandêmico em que as cadeias de produção estavam praticamente todas interrompidas. Por isso, acredito que houve uma combinação de habilidade política, disposição da Anvisa de conversar e adaptar os processos e a capacidade prévia de Bio-Manguinhos de produzir a vacina. O fato de o processo ter transparência e o Brasil ter um marco regulatório também foram fatores muito importantes”, avalia a pesquisadora.
As negociações para a transferência de tecnologia ocorreram, conforme os pesquisadores relembram, em meio a “uma resposta do Brasil à pandemia de COVID-19 caracterizada pela abordagem anticientífica do ex-presidente Jair Bolsonaro, que incluía a minimização consistente das ameaças à saúde representadas pelo SARS-CoV-2, sua recusa em seguir as diretrizes da OMS referentes a intervenções não farmacêuticas [como o distanciamento social e o uso de máscaras] e suas tentativas de desacreditar a vacinação”.
“A diplomacia da Fiocruz foi muito habilidosa em, no cenário que tínhamos, construir consenso e apoio político para conseguir R$ 2 bilhões para o acordo com a AstraZeneca. Em junho de 2020, congressistas foram até Bio-Manguinhos conhecer o projeto, a fábrica de imunizantes e conversaram sobre a necessidade de recursos. Ao fim e ao cabo, o governo do Bolsonaro autorizou e provisionou a transferência de tecnologia, mas não fizeram isso de forma voluntária. Existia aquela contingência da disputa com o Doria [ex-governador de São Paulo que, na época, negociava a compra de vacinas com a China], isso fez com que o momento fosse oportuno para a Fiocruz conseguir o apoio do Governo Federal. Era de interesse político deles”, afirma Fonseca.
A pesquisadora ressalta que não é trivial construir o consenso em torno da transferência de tecnologia. “Existe muita desconfiança em relação a por que produzir aqui, por que fazer transferência de tecnologia, por que não comprar mais barato. A vacina da AstraZeneca era a mais barata, surpreendentemente a Covaxin [imunizante de origem indiana] era uma das mais caras. Custava mais de US$ 10. Já a da AstraZeneca era pouco mais de US$ 3”, pontua.
Capacidade produtiva
Fonseca destaca que a escolha da vacina foi outro ponto importante para que a transferência de tecnologia fosse bem-sucedida. “Era do interesse [da Universidade] de Oxford e da AstraZeneca construir uma rede de produção global e Bio-Manguinhos era um parceiro importante para eles, por ter a capacidade de biorreatores e processos condizentes com a tecnologia que a farmacêutica queria difundir. Além disso, a Fiocruz tem longos anos de experiência com transferência de tecnologia, o que fez com que tivesse conhecimento suficiente para adaptar os processos da AstraZeneca”, destacou.
Os pesquisadores contam que os responsáveis por Bio-Manguinhos consideraram a vacina criada pela Universidade de Oxford, em parceria com a AstraZeneca, particularmente adequada, por estar (na época das negociações) em fase avançada de desenvolvimento e utilizar a tecnologia do vetor viral, que é complementar às competências e infraestrutura já existentes em Bio-Manguinhos.
“Com isso, esperava-se ganhar agilidade também no processo de fabricação da vacina. A Fiocruz realizou um processo amplo de prospecção lá no começo da pandemia, para saber quais vacinas Bio-Manguinhos teria tecnologia para receber. A CoronaVac, por exemplo, exige um laboratório com nível 3 de biossegurança [NB3] que Bio-Manguinhos não tem e para construir demoraria mais de ano”, afirma.
Fonseca conta ainda que o imunizante da Janssen (Johnson & Johnson), embora também utilizasse a tecnologia de vetor viral, na época se encontrava em estágio inicial de desenvolvimento. Ainda menos viáveis, eram as vacinas de mRNA, da BioNTech-Pfizer e da Moderna. De acordo com os pesquisadores, apesar da atratividade dessas vacinas em termos de alta adaptabilidade e também por estarem em estado avançado de desenvolvimento, elas exigiriam a construção de nova infraestrutura e o desenvolvimento de novas habilidades, algo muito desafiador e moroso, sobretudo, em meio à pandemia.
“A vacina da AstraZeneca é de vetor viral não replicante, então os ganhos com a transferência de tecnologia são enormes. Bio-Manguinhos adquiriu o conhecimento para a produção dessa tecnologia e pode utilizar isso a longo prazo para produzir outros imunizantes ou então para reagir mais rápido se houver uma nova pandemia. E, no curto prazo, o ganho é poder fazer adaptações para novas variantes de preocupação”, diz.
Compra de uma promessa
O contrato de transferência de tecnologia AstraZeneca-Fiocruz começou quando a vacina ainda estava em testes clínicos. Como nesse período a vacina ainda não tinha sido aprovada e, portanto, não poderia ser utilizada pela população, o Ministério da Saúde utilizou um contrato especial de aquisição. Os pesquisadores explicam que, nesse caso, foi utilizado um contrato conhecido como Encomenda Tecnológica (ETEC), que permite a instituições públicas firmar acordos de desenvolvimento de produtos tecnológicos que ainda necessitam de aprovação regulatória. A ETEC faz parte da Lei de Inovação de 2004 e do Código de Ciência, Tecnologia e Inovação de 2016.
“Acho importante destacar a transparência que a Fiocruz teve em todo esse processo e as lições que tiramos para outros contextos, outras situações que precisem de transferência de tecnologia, não só no Brasil e não só no período de pandemia. É de extrema importância construir um consenso político em torno do assunto a partir da transparência. Porque fazer esse tipo de contrato em países de renda baixa e média e com altos índices de corrupção é visto como arriscado, pois na realidade está se comprando algo que ainda não existe. Por isso foi tão importante termos transparência e flexibilidade regulatória”, sublinha.
O artigo Vaccine technology transfer in a global health crisis: Actors, capabilities, and institutions pode ser encontrado em: www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0048733323000239.
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