"É uma crueldade você tirar de uma população a certeza de que ela é perfeitamente capaz de se expressar na própria língua", disse Galindo (foto: Daniel Antônio/Agência FAPESP)
Na 9ª Conferência FAPESP 2024, o linguista, escritor e tradutor Caetano Galindo falou sobre o papel que o idioma português brasileiro pode desempenhar na construção de uma democracia realmente inclusiva
Na 9ª Conferência FAPESP 2024, o linguista, escritor e tradutor Caetano Galindo falou sobre o papel que o idioma português brasileiro pode desempenhar na construção de uma democracia realmente inclusiva
"É uma crueldade você tirar de uma população a certeza de que ela é perfeitamente capaz de se expressar na própria língua", disse Galindo (foto: Daniel Antônio/Agência FAPESP)
José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – “A língua talvez seja o espaço, a ágora, em que uma revolução pode acontecer sem derramamento de sangue.” Assim Caetano Galindo condensou seu pensamento sobre um idioma que se transforma, e, ao se transformar, se transforma, ele mesmo, em fator de transformação. A ideia foi apresentada e desenvolvida com brilho durante a 9ª Conferência FAPESP 2024: “Latim em Pó: o que nossa língua pode nos ensinar sobre democracia, poder, diferença e convívio”.
Hoje um dos mais importantes linguistas brasileiros, tradutor premiado e autor de uma obra ficcional que se estende pelo romance, o conto e o texto teatral, Galindo enfatizou esse papel transformador da língua, que ganhou especial relevo no Brasil dos anos recentes. E disse que a língua como fenômeno unificado e coeso é, na verdade, uma construção artificial, moldada por estruturas de poder. Em contraste com essa língua elitista, racializada, que se impõe de forma muitas vezes cruel, existe a enorme diversidade das línguas faladas pelas pessoas, que acabam por se harmonizar graças a mecanismos homeostáticos.
“A língua é mais do que uma sequência de regras: é o espaço onde as diferenças convivem e criam harmonias. Ela tem muito mais a ver com as pessoas e suas variações do que com a norma que se impõe”, pontuou. E foi adiante: “Em algum momento, o Brasil se conformou com a ‘ficção do monolinguismo’, mas esta é uma realidade recente. Ao longo da maior parte de nossa história, a ‘língua geral’ [derivada do tupi] e o ‘português imperfeito’ dos africanos escravizados foram os instrumentos de contato entre os diferentes povos que aqui viviam”.
Explorando esse contraste entre a autorregulação e a normatização, ele descreveu como a língua portuguesa, em seu processo de consolidação como idioma oficial, foi sendo enquadrada a partir do enfoque de uma elite. “Durante séculos, muitos brasileiros foram ensinados a achar que sua língua era ‘errada’ e que ‘falar errado’ era sinal de ignorância. É uma crueldade você tirar de uma população a certeza de que ela é perfeitamente capaz de se expressar na própria língua”, afirmou, pontuando que todas as línguas são perfeitas nelas mesmas.
Esse mecanismo de exclusão se autoperpetuou por meio do sistema educacional. Mas Galindo identifica hoje, no Brasil de 2024, importantes fatores de mudança: “A comunicação muito intensa, as redes sociais, o acesso melhorado à educação plena e o acesso ampliado à educação superior estão fazendo agora com que certas formas da língua portuguesa brasileira, tradicionalmente escanteadas por esse elitismo branco, europeu, conservador, estejam vindo à tona. Elas estão aparecendo e estão deixando de ser automaticamente consideradas inferiores”.
Um exemplo: “Quando o Emicida fala em público, ele não faz muita força para falar como a elite esperaria que falasse. E, para usar uma palavra da moda, há nisso um elemento empoderador. As pessoas hoje podem crescer no Brasil com exemplos de uso fértil, artístico, brilhante do idioma, que não baixam a cabeça para padrões artificiais, impostos e mantidos à custa de um sistema de exclusão”, disse.
E arrematou: “Vejo um futuro brilhante pela frente? Não, nenhum ser humano do mundo hoje vê um futuro brilhante pela frente em qualquer área. Mas vejo, sim, uma pepita de interesse. Alguma coisa parece estar acontecendo. E eu, do ponto de vista de, acima de tudo, alguém que tem muito amor por essa coisa estranha, por essa flor bizarra, por essa ‘flor do Lácio’ que eu chamo de ‘flor de Luanda’, de ‘latim em pó’, consigo olhar para isso e pensar: há uma possibilidade!”.
Galindo é professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Suas produções mais famosas são o livro Latim em pó: um passeio pela formação do nosso português (Companhia das Letras, 2023) e a tradução do Ulysses (Companhia das Letras, 2012), a principal obra de James Joyce, contemplada com os prêmios da Academia Brasileira de Letras (ABL) e da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Além destas, vale citar o ensaio Sim, eu digo sim: uma visita guiada ao Ulysses de James Joyce (Companhia das Letras, 2016), a coleção de contos Sobre os canibais (Companhia das Letras, 2019), o romance Lia: cem vistas do monte Fuji (Companhia das Letras, 2024) e a peça de teatro Ana Lívia, que estreou em São Paulo no ano passado, com direção de Daniela Thomas e Bete Coelho e Georgette Fadel no elenco. Além disso, traduziu mais de 60 livros: do italiano, do romeno, do dinamarquês e, muito principalmente, do inglês. Leia mais sobre ele na entrevista “O mundo virou uma grande rede de contato e de contágio; e as línguas estão mudando cada vez mais rápido”, recém-publicada pela Agência FAPESP.
A mesa de abertura da 9ª Conferência FAPESP 2024 teve a presença do presidente da FAPESP, professor Marco Antonio Zago; do coordenador das Conferências e Escolas Interdisciplinares FAPESP, professor Fernando Ferreira Costa; e da integrante da comissão organizadora das Conferências e Escolas Interdisciplinares FAPESP, professora Maria de Fátima Morethy Couto. A moderação foi da professora Ligia Fonseca Ferreira, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Introduzindo a conferência, Zago contou que conheceu Galindo por meio de dois livros: “O primeiro deles, Latim em pó, foi presente do meu amigo José Ernesto dos Santos, e eu li em um dia. Eu vinha para São Paulo, ganhei de presente na hora do almoço, vim lendo durante toda a viagem, fiz uma rápida pausa para um lanche quando cheguei, e só fui dormir depois que esgotei o livro. É interessante porque é um livro que cobre dezenas de séculos. Já o segundo livro, eu recebi de presente do cônsul-geral da Irlanda em São Paulo, e é um volume alentado de cerca de mil páginas, mais ou menos, um romance que se passa todo ele em um dia, mas que, tenho certeza, ninguém leria em menos de uma semana, ou algumas semanas, ou, quem sabe, meses. Trata-se do Ulysses de Joyce, traduzido de maneira muito original e criativa pelo Galindo”.
Apresentando o conferencista, antes de falar dos vários livros e prêmios, e de dizer que ele se graduou em letras, em francês, e que também é músico e toca violão clássico, Ligia Fonseca Ferreira resumiu em um parágrafo curto e bem-humorado a “biografia autorizada” de Galindo, certamente escrita por ele mesmo: “Nasceu em 1973 em Curitiba, onde mora com dezenas de instrumentos musicais carentes, milhares de livros não lidos, um Leopoldo canino e uma esposa que, definitivamente, não merece”.
A 9ª Conferência FAPESP 2024: “Latim em Pó: o que nossa língua pode nos ensinar sobre democracia, poder, diferença e convívio” pode ser assistida na íntegra em: www.youtube.com/live/1ze4cHXKF9w.
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