Durante as duas semanas da Expedição DEGy Rio Negro, entre Manaus e Santa Isabel do Rio Negro, 27 espécies de sarapó foram coletadas (foto: Phelipe Janning/Agência FAPESP)
Os mais abundantes peixes-elétricos estão presentes desde o fundo dos grandes rios até os igarapés, onde podem se enterrar na areia ou se confundir com o folhiço. Em duas semanas, expedição na bacia do rio Negro coletou 27 espécies do grupo
Os mais abundantes peixes-elétricos estão presentes desde o fundo dos grandes rios até os igarapés, onde podem se enterrar na areia ou se confundir com o folhiço. Em duas semanas, expedição na bacia do rio Negro coletou 27 espécies do grupo
Durante as duas semanas da Expedição DEGy Rio Negro, entre Manaus e Santa Isabel do Rio Negro, 27 espécies de sarapó foram coletadas (foto: Phelipe Janning/Agência FAPESP)
André Julião, de Santa Isabel do Rio Negro | Agência FAPESP – Na Amazônia, um mesmo trecho de igarapé pode ter diferenças ecológicas suficientes para ter peixes bastante distintos entre si, mesmo considerando apenas os peixes-elétricos, que são os sarapós e os poraquês.
Durante as duas semanas da Expedição DEGy Rio Negro, entre Manaus e Santa Isabel do Rio Negro, 27 espécies de sarapó foram coletadas. Estima-se que a bacia do rio Negro seja lar de cerca de cem espécies de Gymnotiformes, como é chamado o grupo dos peixes-elétricos.
Em meio a outros peixes coletados, alguns sarapós se destacam: grupo emite sinais elétricos constantemente e pode ser detectado por um aparelho especial (foto: André Julião/Agência FAPESP)
Coletar e analisar esses peixes permite compreender melhor sua diversidade e evolução, como propõe o projeto apoiado pela FAPESP no âmbito do qual ocorreu a expedição, em fevereiro deste ano, capitaneada pelo Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZ-USP). Os relatos da viagem compõem a nova edição da série Diário de Campo, cujos episódios podem ser conferidos em: agencia.fapesp.br/diario-de-campo.
Num dia de coletas, os pesquisadores apontavam o aparelho usado para detectar peixes-elétricos para o fundo arenoso de um igarapé, quando puderam ouvir as descargas, convertidas em som, de Gymnorhamphichthys bogardusi. A poucos metros dali, em um trecho cheio de folhas mortas, novamente um sinal, dessa vez de Hypopygus lepturus.
O primeiro é alongado e translúcido, uma adaptação à vida debaixo da areia. O outro, repleto de manchas marrons que o tornam muito parecido com as folhas apodrecidas que se depositam no fundo do igarapé.
Sarapós que se escondem na areia, como o Gymnorhamphichthys bogardusi, são translúcidos e alongados, uma adaptação a esse tipo de ambiente (foto: André Julião/Agência FAPESP)
“Isso não é uma exclusividade dos peixes-elétricos. Os animais, de modo geral, se adaptam ao hábitat, podendo adquirir características semelhantes mesmo sendo de grupos totalmente diferentes, o que é chamado de convergência evolutiva”, explica Carlos David de Santana, pesquisador associado ao Museu Nacional de História Natural, da Smithsonian Institution, nos Estados Unidos, parceira do projeto.
Nesse caso, há mais de uma espécie de sarapó que é translúcida e de corpo alongado, como Gymnorhamphichthys rondoni e Gymnorhamphichthys rosamariae, por exemplo. Assim como algumas que se confundem com o folhiço (cobertura de folhas soltas sobre o solo).
Outras diferenças podem se dar entre populações de uma mesma espécie, a depender de onde elas ocorrem. No caso dos sarapós, uma mesma espécie pode ter uma cauda maior ou menor de acordo com a bacia hidrográfica em que vive.
No rio Negro, onde a condutividade elétrica da água é baixa, a cauda dos sarapós tende a ser maior, a fim de transmitir melhor os sinais elétricos que permitem a esses peixes se localizar e encontrar parceiros sexuais, por exemplo.
Assim, em águas com maior condutividade, como as da bacia do rio Amazonas, a mesma espécie pode ter uma cauda menor.
“É como as antenas de rádio mais antigas. Se o sinal não estava bom, você aumentava a antena até sintonizar a estação. Da mesma forma, a cauda mais comprida permite captar e transmitir melhor os sinais elétricos quando o ambiente não é tão favorável para a propagação dessas ondas, como é na bacia do rio Negro”, aponta Raimundo Nonato Gomes Mendes Júnior, analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e doutorando no MZ-USP.
Uma cauda mais alongada pode ter suas desvantagens, porém. Há espécies, de sarapó inclusive, especializadas em se alimentar da cauda de sarapós. O filamento caudal, como é chamado pelos especialistas, se regenera, e os órgãos vitais dos peixes-elétricos estão mais próximos da cabeça. Por isso, podem continuar se alimentando e se reproduzindo mesmo que faltem alguns centímetros do corpo.
Sarapó
Comparados aos poraquês, os sarapós são peixes muito mais diversos e abundantes. Das cerca de 250 espécies da ordem dos peixes-elétricos (Gymnotiformes), apenas três são de poraquê e todas as outras de sarapó, que também podem ser conhecidas como ituí e tuvira. Algumas espécies são criadas em cativeiro para servirem de isca viva.
Para quem estuda os peixes-elétricos, uma vantagem desse grupo em relação a outros peixes é que eles podem ser detectados mesmo sem ser avistados. Com o aparelho que detecta os sinais elétricos, é possível não apenas saber que os animais estão ali, como diferenciar os gêneros e mesmo algumas espécies.
Microsternarchus bilineatus coletado pelo mestrando do MZ-USP Vinicius Cardoso durante Expedição DEGy Rio Negro (foto: André Julião/Agência FAPESP)
“De maneira geral, os peixes-elétricos utilizam uma descarga de baixa voltagem para navegação e comunicação. Além disso, alguns estudiosos têm utilizado a característica da descarga dos órgãos elétricos como caráter taxonômico, ou seja, além da anatomia interna e externa e do DNA, a descarga do órgão elétrico também ajuda a identificar as espécies de Gymnotiformes”, conta Santana.
No barco, após a coleta, o pesquisador explicava isso enquanto um pequeno sarapó da espécie Brachyhypopomus bennetti nadava num aquário sobre a mesa à sua frente. Na água, dois eletrodos estavam ligados a um gravador, que registrava a descarga do animal convertida em som.
O barulho gerado pela descarga dessa espécie tem um padrão muito semelhante ao da descarga fraca do poraquê, um som pausado (“pô-pô-pô-pô”).
“No ambiente natural, o poraquê pode predar algumas espécies de sarapó. Uma das teorias é que essa espécie produz descarga similar à do poraquê para evitar ser comido por ele”, explica o pesquisador.
O sarapó que “imita” o poraquê é retirado do aquário e outra espécie é colocada em seu lugar. Agora, os eletrodos ligados ao gravador registram outro som, constante, mais parecido ao de um avião monomotor (“pôôÔÔÔôôôÔÔÔ”).
No alto, Brachyhypopomus bennetti, espécie de sarapó que emite impulsos elétricos com padrão semelhante ao dos poraquês, talvez para confundir o predador; abaixo, Hypopygus lepturus, sarapó com padrão de cores que se confunde com o folhiço em que normalmente é encontrado (fotos: Douglas Bastos)
Outra diferença dos poraquês para os sarapós é que o primeiro pode pausar sua descarga fraca por alguns instantes. Os sarapós, por sua vez, passam toda a vida emitindo sinais elétricos, o que dificulta escapar da detecção por outros peixes-elétricos que possam comê-los, mas garante sua navegação, busca por presas e comunicação com parceiros. Com olhos pequenos, sua visão é bastante limitada.
A cada sarapó coletado pela equipe a descarga elétrica é gravada e salva como um arquivo de áudio, que posteriormente pode ser analisado em softwares especiais. Santana e Mendes estão criando um banco de dados dessas descargas, que poderá ser usado para estudos comparativos.
“Será que as descargas podem ter variações entre diferentes populações de uma mesma espécie, por exemplo? Será que um sarapó do rio Negro tem um ‘sotaque’ diferente de outro no rio Amazonas? São perguntas como essa que tentaremos responder”, encerra Mendes.
Acompanhe os outros episódios da série Diário de Campo – Rio Negro em: agencia.fapesp.br/diario-de-campo.
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