Ao longo do estudo, o empreendedorismo foi aparecendo como uma das principais estratégias utilizadas por esses moradores para se inserir economicamente no contexto da crise (foto: Valter Campanato/Agência Brasil)
Estudo feito em bairro periférico de São Paulo procurou saber como as populações de baixa renda lidaram com uma situação de crise econômica que teve início em 2014 e se agravou durante a pandemia
Estudo feito em bairro periférico de São Paulo procurou saber como as populações de baixa renda lidaram com uma situação de crise econômica que teve início em 2014 e se agravou durante a pandemia
Ao longo do estudo, o empreendedorismo foi aparecendo como uma das principais estratégias utilizadas por esses moradores para se inserir economicamente no contexto da crise (foto: Valter Campanato/Agência Brasil)
José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – Entender como as populações de baixa renda lidaram com os efeitos da crise econômica que se instalou no país a partir de 2014 foi o objetivo da pesquisa “A crise vista da periferia: luta pela mobilidade social nas fronteiras da (i)legalidade”, realizada por Leonardo de Oliveira Fontes com apoio (19/13125-2 e 21/13970-4) da FAPESP.
O artigo Between dreams and survival: the (dis)embeddedness of neoliberalism among entrepreneurial workers from São Paulo’s peripheries (Entre sonhos e sobrevivência: o (des)enraizamento do neoliberalismo entre trabalhadores empreendedores das periferias de São Paulo), publicado recentemente no International Journal of Urban and Regional Research, é um dos resultados da investigação.
Fontes é atualmente professor do Departamento de Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador do Núcleo de Etnografias Urbanas do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
“Ao longo do estudo, o ‘empreendedorismo’ foi aparecendo como uma das principais estratégias utilizadas por esses moradores para se inserir economicamente no contexto da crise. Essa constatação, que obtive a partir de pesquisa qualitativa, foi corroborada por dados quantitativos. Enquete realizada em 2021 pelo Global Entrepreneurship Monitor (GEM) mostrou que 50 milhões de brasileiros que ainda não tinham seu próprio negócio gostariam de abrir uma empresa nos próximos três anos. Isso representava um aumento de 75% em comparação com 2020”, diz Fontes.
O número foi atribuído principalmente à crise econômica, agravada pela pandemia de COVID-19. E expressava, ao menos em parte, a falta de melhor alternativa, pois a renda média dos trabalhadores informais havia sido achatada, de cerca de R$ 2.200 em 2014 para R$ 1.991 em 2022. Comparativamente, a renda de trabalhadores formais era de R$ 2.472 em 2022.
Fontes afirma que os moradores das periferias que aderem ao empreendedorismo podem ser agrupados, grosso modo, em dois conjuntos: os que atuam de maneira inteiramente informal e os que buscam se formalizar como microempreendedores individuais (MEI). Atualmente, mais de 15 milhões de pessoas no Brasil possuem cadastro de MEI. E, apenas na cidade de São Paulo, há mais de 1 milhão de pessoas cadastradas. “De acordo com o Mapa da Desigualdade da Rede Nossa São Paulo de 2022, o Jardim Ângela, onde desenvolvi a pesquisa, era o segundo distrito com maior proporção de MEIs do município de São Paulo, atrás apenas do Grajaú, abrigando 2,47% do total de MEIs da capital paulista”, informa.
Sua pesquisa, que embasa o artigo, foi feita em moldes qualitativos e etnográficos, utilizando entrevistas em profundidade e observação participante em locais estratégicos. “Desde 2019, realizei o que chamamos de ‘observação participante’, presencial ou virtual, em feiras e encontros de empreendedores. Além disso, fiz cerca de 20 entrevistas e mantive várias conversas informais com interlocutores envolvidos em diversos tipos de negócios e com diferentes origens socioeconômicas. Também entrevistei alguns trabalhadores formalizados, para comparar suas diferentes escolhas em termos de entrada no mercado de trabalho”, relata Fontes.
O pesquisador conta que, ao analisar o tema do empreendedorismo nas classes populares, encontrou duas perspectivas dominantes na literatura sociológica. De um lado, autores que analisam o empreendedorismo como parte da estratégia de acumulação do capitalismo neoliberal, em que temas como a chamada “uberização do trabalho” são centrais ao lado da perda de direitos trabalhistas. O termo uberização, já consolidado entre sociólogos, refere-se a um sistema no qual os trabalhadores individuais utilizam seus bens privados para oferecer serviços sob demanda, organizados por uma plataforma digital, controlada por grande empresa. De outro lado, Fontes acessou autores que analisam esse processo de crescimento do empreendedorismo como mecanismo de convencimento ideológico de trabalhadores pobres, nos quais o indivíduo isolado é responsabilizado por seu sucesso ou insucesso, tendo enfraquecida sua identidade de “trabalhador” e, por consequência, sua capacidade de organização e reivindicação.
“Essa segunda perspectiva parte das análises de Michel Foucault [1926-1984] publicadas no livro Nascimento da Biopolítica [1978-1979], que entendem a ‘razão neoliberal’ como uma forma de governar os pobres por meio da ideia do ‘empreendedorismo de si mesmo’. Ou seja, trata-se de convencer os trabalhadores e produzir neles disposições para que se enxerguem como pequenas unidades empresariais e busquem maximizar seus rendimentos a partir de investimentos em seu ‘capital humano’”, explica Fontes.
Considerando essas duas perspectivas, mas buscando ir além, o pesquisador diz que, em sua pesquisa qualitativa, procurou entender qual era a origem da disposição empreendedora dos moradores das periferias de São Paulo. E, com isso, analisar o nível de “enraizamento” das práticas neoliberais nos comportamentos e instituições sociais que já existiam nas periferias paulistanas.
“Meu objetivo foi apontar que eventuais enraizamentos da ideia de empreendedorismo e mesmo de valores neoliberais [que não são necessariamente a mesma coisa] têm origens históricas e sociais que vão além do simples ‘convencimento ideológico’ ou da construção de uma ‘subjetividade neoliberal’ inteiramente nova”, resume.
No artigo, Fontes apresenta cinco casos de interlocutores pertencentes a três famílias diferentes: dois casais com filhos e uma mulher solteira. Seu intuito foi analisar como os papéis de gênero também exercem influência relevante no desenvolvimento da disposição para empreender. Ele conta que, no caso de homens mais velhos, na casa dos 50 anos ou mais, identificou três conjuntos de valores morais importantes: a “ética do trabalhador”, a “ética da sevirologia” e a “ética do provedor”.
Fontes explica: “A ‘ética do trabalhador’ foi construída nas periferias urbanas brasileiras em oposição à figura de ‘bandidos’ ou ‘vagabundos’. Trabalhar, não importa em quê, sem se envolver em qualquer tipo de atividade criminosa, ‘é o certo’ para essa geração mais antiga. Nesse sentido, Hamilton, 49 anos, me disse: ‘O meu primeiro emprego era de catador de ferro velho. Eu vendia ferro velho e o pessoal falava que eu era mendigo. Na fase de criança e adolescente, (...) era isso aí ou nada. Então, eu não aprendi a roubar, não aprendi a traficar, não aprendi nada, aprendi a catar ferro velho e trabalhar, que é o certo’”.
A “ética da sevirologia” baseia-se na ideia de que é preciso “se virar” para garantir o próprio sustento e o sustento da família. Não dá para escolher trabalhos, é preciso pegar o que aparece e, sempre que possível, buscar trabalhos adicionais ou “bicos” para complementar a renda da casa. Sobre isso, Hamilton falou para Fontes: “Eu morava num barraco de tábua. Chovia e a gente tinha que tá pendurado, segurando as coisas. Meu pai não tava mais em casa. E a gente aprendeu a se virar na vida. E esse se virar gerou uma independência sobre nós”.
Quanto à “ética do provedor”, ela parte da ideia de que o homem deve ser o principal responsável pelo sustento da casa. “Há um certo caráter heroico nessa masculinidade que valoriza a superação de obstáculos com o intuito de dar aos filhos uma vida melhor do que aquela que o pai teve no passado e, eventualmente, oferecer algum ‘luxo’ à família, como viagens, escola particular, plano de saúde ou refeições fora de casa em ocasiões especiais”, comenta Fontes.
No caso das mulheres com filhos, além da “ética da sevirologia”, que Fontes identificou em quase todos os seus interlocutores oriundos de famílias de baixa renda, o pesquisador reconheceu também uma “ética da cuidadora”, relacionada com o papel de mãe que deve estar presente o máximo possível na criação dos filhos. Vale lembrar que, segundo levantamentos feitos pelo Grupo Globo e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aproximadamente 48% dos lares brasileiros têm mulheres como chefes de família. Essa reconfiguração da estrutura familiar vem ocorrendo de forma acelerada no país e tende a se acentuar ainda mais.
Mas, quer sejam as únicas provedoras, quer tenham companheiros ou companheiras que compartilhem a responsabilidade, é frequente que as mães busquem flexibilidade em seus horários de trabalho para ter mais tempo para dedicar aos filhos. E, nesse caso, o empreendedorismo aparece como alternativa.
“Finalmente, entre as pessoas mais jovens, na casa dos 30 e poucos anos, começa a se destacar uma tendência a mais, o desejo de buscar alguma forma de realização profissional. Mesmo sendo movidas pela ‘ética da sevirologia’, pois desde cedo tiveram que exercer alguma atividade remunerada para ajudar no sustento da casa, é bastante comum que pessoas dessa geração relatem insatisfações no mercado de trabalho. Essa insatisfação pode estar relacionada a humilhações ou opressões no ambiente profissional, especificamente a assédio moral ou sexual no caso das mulheres, mas também pode expressar uma desconexão entre a profissão e aquilo que a pessoa realmente gostaria de fazer”, afirma Fontes.
Renata, 35 anos, disse a ele que sentia “uma certa repugnância” pelas atividades que realizava quando era publicitária, referindo-se ao “excesso de impulsionamento para vender”. Para ela, fabricar e vender cadernos, como empreendedora, foi a forma de buscar um sentido para o trabalho e para a própria vida: “Eu não enxergo só como um trabalho, assim, como ‘aí, tá gerando renda’. Tem toda uma coisa afetiva, que eu considero muito. Então me move. Me move saber que os cadernos vão ser pra pessoas que gostam de escrever, de desenhar com carvão, com giz, gente que gosta de pesquisar, que vai anotar as pesquisas, sabe? Então é muito legal!”.
E ela acrescenta: “Quando alguém me pede para fazer um trabalho e fala: ‘olha, Renata, eu quero 20 cadernos assim e assado’, é muito louco, porque são 20 cadernos da minha empresa, para tal pessoa. E então eu já sei que essa pessoa vai dar como presente para alguém, que é de um projeto ou algo assim. Aí ela já me inspira. Tem todo um valor afetivo com as pessoas que me procuram que deixa o trabalho diferente”.
É importante ressaltar que nem todos os interlocutores do pesquisador aderem ao rótulo de “empreendedor”. Alguns preferem dizer que “trabalham por conta própria” ou que são “trabalhadores autônomos”. Em outros casos, há uma crítica da parte dos próprios empreendedores no sentido de que o termo teria sido vulgarizado e utilizado como forma de mascarar a perda de direitos ou os números de desempregados. Mesmo assim, alguns adotam o termo “empreendedor” na expectativa de “hackear” o conceito, valorizando o caráter periférico de sua atividade.
Como resultado de sua pesquisa, Fontes considera que algumas das prescrições neoliberais encontraram enraizamento nas práticas e projetos previamente existentes entre as classes populares urbanas. “Não se trata de uma simples conquista de corações e mentes ou de uma conversão ideológica das classes populares ao neoliberalismo. Os trabalhadores urbanos não são apenas vítimas, mas agentes de transformação e resistência à lógica neoliberal”, argumenta.
E continua: “Também é preciso diferenciar o desejo de trabalhar para si ou mesmo de ser um empreendedor de uma adesão completa à ‘razão neoliberal’. Alguns dos meus interlocutores, de fato, buscam no empreendedorismo uma justificação e por vezes até uma romantização de sua condição precária no mercado de trabalho. Outros enxergam no empreendedorismo uma necessidade, temporária ou permanente, de ter flexibilidade de horários ou aumentar a renda. Por fim, há aqueles que querem dar um novo sentido à ideia de empreendedorismo, buscando se afastar de situações precárias, insatisfatórias do ponto de vista pessoal ou degradantes no mercado de trabalho”.
Para o pesquisador, é inquestionável que existam “afinidades eletivas” entre os valores expressos por empreendedores das periferias e a chamada “razão neoliberal”, mas existem também espaços de resistência e disputa. E essa complexidade precisa ser valorizada e analisada sociologicamente.
O artigo Between dreams and survival: the (dis)embeddedness of neoliberalism among entrepreneurial workers from São Paulo’s peripheries pode ser acessado em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/1468-2427.13218.
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