A pandemia não comprometeu o tratamento da malária em Mâncio Lima, município brasileiro com maior incidência da doença, mas o controle de vetores em domicílio teve de ser interrompido
A pandemia não comprometeu o tratamento da malária em Mâncio Lima, município brasileiro com maior incidência da doença, mas o controle de vetores em domicílio teve de ser interrompido
A pandemia não comprometeu o tratamento da malária em Mâncio Lima, município brasileiro com maior incidência da doença, mas o controle de vetores em domicílio teve de ser interrompido
A pandemia não comprometeu o tratamento da malária em Mâncio Lima, município brasileiro com maior incidência da doença, mas o controle de vetores em domicílio teve de ser interrompido
Agência FAPESP – A pandemia da COVID-19 não comprometeu o diagnóstico e o tratamento da malária em Mâncio Lima, no Acre, município brasileiro com maior incidência da doença. Mas o controle de vetores teve de ser interrompido. No quarto episódio da série Diário de Campo – Vale do Juruá, Marcelo Urbano Ferreira e Marly Augusto Cardoso, pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) e da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP), respectivamente, contam como a região tem convivido simultaneamente com o SARS-CoV-2 e o Plasmodium. Apoiados pela FAPESP, eles rastreiam a disseminação do novo coronavírus na região.
Episódio 4: Malária
A pandemia expõe mazelas sociais e sanitárias da região
Depoimento de Marcelo Urbano Ferreira à Agência FAPESP
8 de agosto, sábado
Hoje foi um dia de folga. O posto de saúde sentinela Raimundo Reginaldo de Almeida está fechado durante o final de semana e os pacientes que possam surgir vão direto ao hospital para o atendimento inicial. Nesses casos, os testes laboratoriais são feitos na segunda-feira, lá no posto de saúde.
Estivemos em Cruzeiro do Sul. Fomos à feira do agricultor, que funciona todo sábado de manhã. Os próprios produtores expõem e vendem seus produtos. Depois visitamos Thainara Adrielli Lima, uma enfermeira que participa desde o início do projeto MINA. Até recentemente, Thainara estava na direção do pronto-socorro e da UTI do Hospital Regional do Juruá, participando diretamente do atendimento de pacientes. Foi um dos primeiros profissionais da equipe a contrair a infecção.
Thainara agora trabalha na Coordenação Regional de Saúde do Estado, em Cruzeiro do Sul. Lá, ela está em contato direto com o Gladson Naber de Melo, também enfermeiro e antigo colaborador. Gladson trabalhou conosco em 2010 em um ensaio clínico financiado pelo Ministério da Saúde para avaliar a eficácia terapêutica do fármaco artesunato-mefloquina no tratamento da malária.
A próxima visita social foi a Rodrigo Medeiros de Souza e Leandra Bordignon, um casal de amigos professores da UFAC. Rodrigo é farmacêutico, natural de Cruzeiro do Sul, e fez seu doutorado no Instituto de Ciências Biomédicas da USP. É um colaborador crucial no projeto MINA e em projetos sobre malária na região. Leandra é bióloga, gaúcha e coordena o curso de bacharelado em biologia da UFAC em Cruzeiro do Sul e um projeto de extensão sobre COVID-19.
Agora há pouco, Leandro Matthaus Souza ligou. Aluno de Letras da UFAC e radialista, Leandro, nascido no seringal próximo da Tarauacá, trabalha nos correios e teve um papel fundamental no projeto MINA: localizar os participantes do estudo com os endereços mais difíceis.
10 de agosto, segunda-feira:
Passamos boa parte da tarde conversando com o Sr. Francisco Melo, gerente de controle de endemias do município. Melo é responsável pelo controle da malária e da dengue, as principais doenças infecciosas de transmissão vetorial da região, além de leishmaniose, doença de Chagas e outras infecções menos comuns. Nos países tropicais, especialmente na África, existe grande receio de que as dificuldades impostas pela pandemia de COVID-19 comprometam a continuidade dos programas de controle e eliminação da malária, bem como de outras doenças infecciosas. Algo semelhante ocorreu com os países afetados pelo ebola. Bill Gates escreveu um texto sobre o assunto, publicado há alguns meses no New England Journal of Medicine.
Mesmo na América Latina, o impacto pode ser dramático. Nossos colaboradores do Peru contam-nos que, no Departamento de Loreto [que concentra 95% dos casos da doença causada pelo Plasmodium no país], o controle da malária está essencialmente paralisado. Eles acabam de publicar um artigo sobre mais esse efeito adverso da epidemia.
Mas, segundo nos conta Melo, o diagnóstico e o tratamento da malária em Mâncio Lima vêm sendo feitos nestes últimos meses sem grandes dificuldades. Isso é fundamental, pois Mâncio Lima segue sendo o município brasileiro com maior incidência da doença. A exceção é o controle de vetores, que teve de ser interrompido por exigir a entrada de equipes de saúde nos domicílios. Mas muitos agentes de controle de endemias estão adoecendo por COVID-19, o que desfalca as equipes. Aliás, um dos pacientes positivos de hoje era um agente de controle de dengue. Outro agente, sintomático há sete dias, testou negativo, mas deve refazer o teste de detecção de anticorpos daqui a três dias.
Ficamos sem internet desde a hora do almoço até as 19h. Agora estamos recebendo as notícias do Brasil e do mundo...
11 de agosto, terça-feira:
Parte do dia foi dedicada ao preparo da próxima etapa de avaliação das crianças do projeto MINA, em Cruzeiro do Sul. Fizemos uma visita à Unidade Básica de Saúde do Agricultor, um dos maiores postos de saúde da cidade, situado em local de fácil acesso e com excelente infraestrutura física; por isso, serve de local de avaliação de boa parte das crianças do projeto MINA.
O administrador do posto conta-nos sobre sua experiência com COVID-19. Infectou-se há alguns meses. Foi uma das poucas pessoas que encontramos por aqui que se trataram com hidroxicloroquina. Não teve complicações.
A próxima visita, na manhã de hoje, foi a um laboratório de análises clínicas privado, para discutirmos orçamentos de alguns exames a serem feitos nas crianças de cinco anos de idade durante visita. Uma curiosidade: a sorologia para COVID-19 custa R$ 195. Como não há testes rápidos na rede pública em Cruzeiro do Sul, essa é a opção disponível para a maior parte da população. Somente os pacientes internados têm acesso ao RT-PCR, feito no laboratório público de referência do Estado, em Rio Branco.
Finalmente, fomos ao laboratório de apoio na UFAC, para organizar o material que sobrou da atividade de campo e fazer um breve inventário do material que temos por lá, a ser usado em nossos próximos inquéritos. Parte do material que trouxemos (aventais descartáveis, máscaras, propés, toucas, protetores faciais), no entanto, ficou no próprio posto de saúde em Mâncio Lima, para o pessoal de assistência.
Ainda em Cruzeiro do Sul, recebi uma ligação de uma funcionária do supermercado em Mâncio Lima no qual está havendo um pequeno surto de COVID-19. Trata-se daquele caso que mencionei da festa-surpresa de aniversário de um funcionário, há dez dias, que parece ter resultado na infecção de pelo menos uns dez colegas. Hoje havia mais um funcionário com sintomas sugestivos. Orientei que o funcionário procurasse o posto de saúde sentinela na cidade, onde os testes de detecção de anticorpos estão sendo realizados. Ontem chegaram mais testes rápidos adquiridos pela Secretaria Municipal de Saúde; haverá material para testar todos. Todos os funcionários terão de ser testados. Como a maioria deles está em contato direto com os clientes, as chances de disseminação são enormes.
Pequenos surtos como esses podem ocorrer em famílias, entre vizinhos, colegas de trabalho, frequentadores da mesma igreja. Com o inquérito sorológico populacional que faremos em Mâncio Lima em outubro, esperamos mapear alguns desses surtos para compreender os fatores que favorecem a disseminação do vírus.
A epidemia vem revelando todas as mazelas sociais e sanitárias. Em certos casos, revela também o que há de melhor em cada um de nós – sentimentos de empatia, gestos de solidariedade; em outros, traz à tona uma brutalidade que parecia adormecida ou socialmente reprimida, mas agora aflora sem nenhum freio.
12 de agosto, quarta-feira
Deixamos nosso veículo de campo, a velha Mitsubishi Pajero TR4 2009 com quase 200 mil km rodados, sob os cuidados de Marcos Fernandes de Sousa. Marcos, engenheiro agrônomo, é marido de Amanda Sampaio, bióloga – ambos moradores da Vila Assis Brasil. Eles e a área em que moram merecem uma descrição mais detalhada.
A Vila Assis Brasil é uma comunidade rural (mas parcialmente urbanizada e adensada) a cerca de 20 km de Cruzeiro do Sul, bem perto do aeroporto da cidade, com 1.700 habitantes. Uma das atividades econômicas mais importantes da região é a piscicultura comercial. Há uns 170 tanques de criação de peixes na área, muitas vezes próximos às casas. O problema é que muitos desses tanques se tornaram excelentes criadouros para os mosquitos transmissores da malária, os anofelinos. Por isso, a Vila Assis Brasil é uma das áreas com maior incidência de malária no município de Cruzeiro do Sul.
Por dois anos, a partir do segundo semestre de 2017, fizemos um estudo sobre os vetores da malária na Vila Assis Brasil, coordenado por Pablo Secato Fontoura. Biomédico do interior de São Paulo, Pablo é bolsista de pós-doutorado da FAPESP. Um acreano adotivo, hoje exilado na região de Boston, Estados Unidos, onde faz estágio sanduíche na Escola de Saúde Pública de Harvard. A primeira parte do trabalho de Pablo consistiu em avaliar os fatores associados à proliferação de larvas de anofelinos nos tanques de piscicultura. A segunda parte consistiu em uma avaliação do efeito de aplicação mensal de larvicidas biológicos nesses tanques, avaliando dois parâmetros: a densidade de larvas e a incidência de malária. São esses dados que Pablo está analisando agora nos Estados Unidos, sob a supervisão de Márcia Caldas de Castro.
Durante seu trabalho de campo, Pablo conheceu o casal Marcos e Amanda. Marcos e seu pai, Elson, são piscicultores. Marcos envolveu-se no monitoramento das larvas antes da intervenção e, especialmente, na avaliação dos biolarvicidas. Hoje faz mestrado na UFAC, onde já foi professor substituto. Amanda também auxiliou no estudo do efeito dos biolarvicidas, como entrevistadora.
Há pouco mais de um ano, durante um inquérito populacional semestral em Mâncio Lima, tivemos um imprevisto com um dos membros da equipe, que teve de retornar a São Paulo. Por sugestão de Pablo, chamamos a Amanda para recompor nossa equipe. Ela rapidamente se adaptou às nossas rotinas de entrevistas e entrada de dados em tablets e integrou-se muito bem na equipe. Desde então, temos trabalhado com ela em alguns projetos, em especial em uma tarefa nem de longe trivial: a coleta, processamento e criopreservação de parasitas da malária para posterior cultivo in vitro. Amanda foi aprovada para ingresso no mestrado na UFAC em 2020, mas a pandemia chegou no momento em que estava previsto o início das aulas. As atividades didáticas do mestrado devem ficar para 2021.
Hoje compramos algumas polpas de frutas congeladas (cupuaçu e graviola) da tia do Marcos, vizinha do casal, para levar para São Paulo. Faz parte de nossa bagagem toda vez que passamos por aqui.
No boletim de sexta-feira (23/10) você confere o quinto e último episódio da série Diário de Campo – Vale do Juruá. Os episódios 1 “A partida”, 2 “A coleta” e 3 “O atendimento” já estão disponíveis.
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