Artigo publicado na Scientific Reports mostra que o vírus se deslocou a uma velocidade de 1 km por dia durante os últimos surtos silvestres registrados no Estado, entre 2016 e 2019, alcançando municípios jamais afetados antes; autores alertam que a situação pode se repetir (foto: James Gathany/CDC)

Mudança na estratégia de vacinação evitou ciclo de febre amarela urbana em São Paulo, afirmam cientistas
09 de novembro de 2021
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Artigo publicado na Scientific Reports mostra que o vírus se deslocou a uma velocidade de 1 km por dia durante os últimos surtos silvestres registrados no Estado, entre 2016 e 2019, alcançando municípios jamais afetados antes; autores alertam que a situação pode se repetir

Mudança na estratégia de vacinação evitou ciclo de febre amarela urbana em São Paulo, afirmam cientistas

Artigo publicado na Scientific Reports mostra que o vírus se deslocou a uma velocidade de 1 km por dia durante os últimos surtos silvestres registrados no Estado, entre 2016 e 2019, alcançando municípios jamais afetados antes; autores alertam que a situação pode se repetir

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Artigo publicado na Scientific Reports mostra que o vírus se deslocou a uma velocidade de 1 km por dia durante os últimos surtos silvestres registrados no Estado, entre 2016 e 2019, alcançando municípios jamais afetados antes; autores alertam que a situação pode se repetir (foto: James Gathany/CDC)

 

Karina Ninni | Agência FAPESP – A febre amarela é uma doença viral não contagiosa que tem dois ciclos de transmissão: silvestre e urbano. No primeiro, o vírus circula entre macacos, sendo transmitido no Brasil por mosquitos dos gêneros Haemagogus e Sabethes. No segundo, circula entre humanos, sendo transmitido pelo Aedes aegypti. O Brasil não tem casos de febre amarela urbana desde 1942, mas a versão silvestre pode, por acidente, afetar pessoas que moram perto de florestas e matas, ou que as frequentam.

Foi o que aconteceu nos últimos surtos silvestres em São Paulo, entre 2016 e 2019. Segundo artigo publicado na Scientific Reports, que descreve o processo de difusão no Estado, a doença vitimou pessoas em locais muito próximos à capital e em municípios que não tinham recomendação vacinal, pois nunca haviam sido atingidos pela doença, como Campinas. Se a estratégia de vacinação não tivesse sido adaptada às circunstâncias, os efeitos poderiam ter sido muito piores, resultando em mais óbitos, revelam agora os cientistas.

“Passamos por um risco grande de ter a reintrodução da febre amarela urbana em cidades adjacentes a São Paulo. Uma epidemia urbana teria efeitos gravíssimos e seria um retrocesso”, diz Francisco Chiaravalloti Neto, professor do Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP). Ele é coautor do trabalho, conduzido com apoio da FAPESP.

Foram identificadas duas ondas entre 2016 e 2019: uma vinda de oeste para leste (2016 e 2017) e outra se espalhando da região de Campinas aos municípios limítrofes do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Paraná, até o litoral de São Paulo (2017 a 2019). A primeira onda saiu de São José do Rio Preto em abril de 2016 e atingiu Campinas em agosto de 2017, a uma velocidade de 1 quilômetro (km) por dia. “Nesse momento, por conta da baixa cobertura vacinal, os casos em humanos aumentaram e a doença se espalhou em direção à capital paulista, litoral, Vale do Paraíba e Sorocaba na mesma velocidade, e também para o Vale do Ribeira, onde andou mais lentamente”, relembra o professor da FSP-USP.

A estratégia de vacinação do Ministério da Saúde e da secretaria estadual nesses casos é imunizar todo o município que está em risco e também os adjacentes. “Mas, quando a doença atingiu Campinas, a Divisão de Imunização do Estado abriu mão dessa estratégia, que incluía vacinar a cidade inteira mais municípios limítrofes, como Indaiatuba e Paulínia, e decidiu vacinar cidades como Jundiaí, Jarinu e Itatiba, pois foi detectado que era para onde o vírus estava migrando. Na época, Campinas e limítrofes somavam mais do que 1 milhão de habitantes, mas havia disponível no Estado menos de 1 milhão de doses”, resume Adriano Pinter, pesquisador científico da Superintendência de Controle de Endemias (Sucen), órgão da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, e coautor do artigo.

Ele afirma que em Mairiporã, cidade na qual ocorreram 181 casos em humanos, a cobertura estava próxima de 80% quando a doença chegou (por azar, próximo do Natal, época em que o número de visitantes aumenta). “Se Mairiporã teve mais de cem óbitos mesmo com cobertura vacinal acima de 80%, imagina se não tivessem vacinado?”, pergunta-se, salientando que na maioria das cidades sem recomendação vacinal, geralmente, a cobertura fica em torno de 5% da população. “As pessoas só se vacinam quando vão viajar.”

Os cientistas alertam que a situação vivida entre 2016 e 2019 pode se repetir. “Temos de estar atentos, pois sabemos o caminho que a doença pode fazer. Estudos apontam que essas ondas de febre amarela começam na Amazônia e, pelos corredores florestais, passam por Tocantins, Goiás e Triângulo Mineiro até chegar ao Estado de São Paulo, espalhando-se pelo litoral e migrando para o sul. Hoje, a onda chegou ao Rio Grande do Sul. Acredita-se que sejam ondas que aconteçam de cinco em cinco anos. Campinas nunca tinha sido afetada pelo ciclo silvestre, foi a primeira vez. E descrevemos bem esse processo no trabalho”, afirma Pinter.

Até 1999, a versão silvestre da febre amarela estava restrita às regiões Norte e central do país, com casos esporádicos no Sudeste. Desde os anos 2000, São Paulo tem sido um dos centros de expansão e circulação da doença. Entre 2016 e 2019, foram confirmados 648 casos humanos no Estado, com 230 mortes, e 850 casos em macacos ou grupos de macacos. A febre amarela pode apresentar sintomas leves, o que acontece em boa parte das ocorrências, mas a letalidade nos casos graves é de 40%.

Padrão de propagação

Apesar de não ser uma doença contagiosa, o padrão de difusão descrito pelos cientistas é chamado de propagação “por contágio”, expressão que se refere à transmissão no território (como se os fragmentos florestais fossem “contagiosos” uns para os outros).

De acordo com o primeiro autor do artigo, Alec Brian Lacerda, a difusão da doença pode se dar por expansão, por realocação ou de forma híbrida. “A difusão por expansão divide-se em duas: por contágio, quando se observa a propagação pela proximidade de território, ou hierárquica, quando geralmente são atingidos grandes municípios. Nesse caso, a propagação não segue um padrão de continuidade de território, ela dá saltos, o que poderia ser um indício de surto urbano.”

Na difusão por realocação observa-se o movimento migratório: a doença deixa o ponto de origem, no qual para de crescer, e vai para outro mais favorável, criando um novo ponto de origem. “Isso acontece, por exemplo, quando pessoas saem de áreas sem recomendação vacinal e entram, sem vacina, em áreas com recomendação vacinal. Já na propagação híbrida também acontece realocação, mas com o antigo ponto de origem ainda ativo. Caracterizamos os processos dessa maneira e montamos mapas mostrando os municípios e os casos ocorridos: se eram casos em macacos, em humanos, ou ambos”, explica Lacerda, que começou a desenvolver o trabalho ainda como bolsista de iniciação científica da FAPESP.

Segundo Pinter, na época em que foi feita a proposta de vacinação levou-se em consideração que o vírus estaria se propagando apenas entre os mosquitos silvestres e, como eles não conseguem voar muito, aventou-se que a difusão se daria por continuidade do território. “Mas havia ainda uma dúvida sobre o fato de o ser humano participar ou não da transmissão. No artigo, confirmamos que isso não aconteceu, que a transmissão de fato ocorreu apenas entre os mosquitos e os primatas não humanos e que o homem foi atingido eventualmente, mas ele não transmitiu, e a transmissão não ocorreu na cidade. Caso o ser humano tivesse participado da transmissão, ela teria sido hierárquica, ou seja, as pessoas apareceriam infectadas nas grandes cidades, a transmissão daria ‘saltos’ de um local para outro. E o que estava acontecendo era que o vírus estava se espalhando nas pequenas cidades, por continuidade territorial.”

Direção e velocidade

Lacerda esclarece que o grupo usou os dados do Centro de Vigilância Epidemiológica Professor Alexandre Vranjac (CVE), da Secretaria de Saúde de São Paulo (casos envolvendo macacos e casos humanos, por município) e também dados de cobertura vacinal de 2015 a 2018 do Programa Nacional de Imunização (PNI).

“Usamos dados de cobertura vacinal da população entre 0 e 5 anos e a partir deles fizemos uma aproximação da cobertura total para a população, pois os dados disponíveis para essa faixa etária são um registro mais fiel de como o sistema de saúde acessa a população. E o próprio Ministério da Saúde recomenda seu uso em pesquisas como a nossa”, diz ele.

De posse dos dados, os cientistas aplicaram uma técnica estatística chamada krigagem (kriging) para mapear a expansão do vírus. “Para cada município estabelecemos uma data, sempre a data do primeiro caso, seja ele humano ou epizootia, depois criamos uma sequência numérica correspondente aos meses, ligando os municípios aos meses em que se deu o início do processo de difusão e usamos a técnica da krigagem para mapear o fenômeno no espaço e no tempo, criando curvas que mostram qual foi a direção e a velocidade da progressão da difusão. Uma vez com os mapas prontos, pudemos compará-los com o mapa da cobertura vacinal e concluir, por exemplo, que a epidemia chegou a Campinas quando havia cobertura vacinal muito baixa ou não havia recomendação vacinal”, lembra Chiaravalloti Neto.

Invernos quentes

A chegada da doença a locais nunca antes afetados levanta várias hipóteses que precisam ser testadas. “A que faz mais sentido para mim tem a ver com invernos mais quentes. Não deveria haver mosquitos, alados, no inverno. Só deveria haver ovos, pois a larva não sobrevive ao frio e morre. Mas o que vimos é que aconteceu transmissão também durante o inverno em 2017. Ou seja: o mosquito estava voando durante o inverno”, afirma Pinter.

Ele crê ser possível que os invernos mais frios tenham sido responsáveis por bloquear a transmissão do vírus no passado, protegendo cidades como Campinas e Mairiporã. “Só que, agora, temos invernos menos frios. Não estou falando de uma enorme diferença de temperatura, mas de 2 °C, 3 °C. Há artigos sobre a dengue mostrando que temperaturas ao redor de 20 °C são boas para o mosquito, enquanto de 16 °C já são impeditivas. Acontece mais ou menos a mesma coisa com a febre amarela. Por isso, o que faz sentido para mim em meio a tantas hipóteses é que temos tido invernos menos frios e, quanto mais quentes eles forem, mais velozes serão essas propagações do vírus.”

Os principais sintomas da doença são sensação de mal-estar, dor de cabeça, febre alta, dor muscular, calafrios, cansaço, vômitos, náuseas e diarreia, mas ela pode também afetar os rins e o fígado. Felizmente, para febre amarela existe vacina, produzida no Brasil desde 1937. Oferecida pelo Sistema Único de Saúde (SUS), ela oferece proteção vitalícia. “Nosso conselho para a população é que tome a vacina”, dizem, em uníssono, os três autores.

O artigo Diffusion of sylvatic yellow fever in the state of São Paulo, Brazil, assinado também pelas cientistas Leila del Castillo Saad, do CVE, e Priscilla Venâncio Ikefuti, da FSP-USP, pode ser acessado no link www.nature.com/articles/s41598-021-95539-w.
 

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